Quando uma enchente ou uma seca atinge um local, nem todas as pessoas são afetadas da mesma forma. Algumas comunidades sofrem mais do que as outras, seja pelas suas condições prévias ou por sua capacidade de reação e adaptação a eventos extremos. Por isso é fundamental levar em consideração essas diferenças nas políticas e ações de combate aos impactos das mudanças do clima
Justiça climática é o conceito que reconhece a desigualdade socioeconômica como fator determinante na maneira como diferentes grupos ou comunidades sofrem os efeitos da crise climática.
"Isso significa que as soluções climáticas não devem apenas focar na redução de emissões, mas também precisam considerar as especificidades de cada grupo social, incluindo o combate ao racismo ambiental, a proteção de comunidades mais vulneráveis, e a questão territorial", afirma Rogger Barreiros, analista de Socioeconomia e Finanças do Clima do WRI Brasil.O termo justiça climática é reconhecido por entidades como a ONU e o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
No Brasil, o conceito foi incluído como visão de país para 2035 na nova Contribuição Nacionalmente Determinada, apresentada na COP29, e é um direcionador para a construção do Plano Clima que será lançado este ano.
Que grupos são mais vulneráveis às mudanças climáticas?
As mudanças afetam especialmente pessoas historicamente marginalizadas, como povos indígenas, quilombolas, comunidades periféricas e mulheres e crianças de forma geral.
"Esses grupos enfrentam desproporcionalmente os efeitos negativos das mudanças climáticas, como secas, enchentes, calor extremo e perda de recursos naturais, apesar de serem os menos responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa que causam essas mudanças", afirma Rogger, do WRI Brasil.
Na mesma linha, Flávia Martinelli, especialista em mudanças climáticas da WWF-Brasil, diz que pessoas brancas, ricas, sem deficiência, que possuem rede de apoio e que moram em áreas urbanas são as menos afetadas pela crise climática, enquanto pessoas pobres, não-brancas, que estão desempregadas ou possuem empregos informais, que dependem do transporte público, mães solos, idosos, crianças, pessoas com deficiência e indivíduos que fazem parte de comunidades locais e tradicionais são atingidos de forma mais dura pelos eventos climáticos extremos.
"Pessoas que moram em áreas de riscos geralmente estão ali porque foram marginalizados pela estrutura da cidade. Se uma chuva forte provocar um deslizamento e atingir a casa delas, elas correm o risco de perder tudo e não contam com segurança financeira para se reerguer, podendo se tornar ainda mais pobres", explica Flávia.
No Brasil, dados revelam que os impactos das mudanças climáticas são ainda mais severos para mulheres negras, indígenas e quilombolas, principalmente aquelas que vivem em comunidades rurais, pesqueiras, periféricas e favelas.
Esses grupos enfrentam desafios múltiplos, como falta de recursos, precariedade no acesso a serviços básicos e vulnerabilidades estruturais.
Rogger pondera que, apesar da conscientização sobre justiça climática ter crescido nos últimos anos, a discussão ainda está majoritariamente concentrada em grupos e pessoas de países desenvolvidos ou do chamado Norte Global.
"Isso é preocupante, porque esses grupos são historicamente os principais responsáveis pela crise climática e tendem a ser os menos vulneráveis aos impactos", afirma ele.
A crise climática piora a desigualdade já existente?
Sim, a crise climática agrava a desigualdade social. Segundo o 6º relatório de avaliação do IPCC, entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas vivem em contextos de alta vulnerabilidade devido às mudanças do clima.
Essas populações estão concentradas em regiões com restrições de desenvolvimento, como África, Ásia, Américas Central e do Sul, pequenas ilhas e o Ártico.
Ainda de acordo com o órgão, inundações, secas e tempestades têm causado insegurança alimentar e hídrica, afetando desproporcionalmente povos indígenas, pequenos produtores e famílias de baixa renda. Entre
2010 e 2020, a mortalidade associada a esses eventos foi 15 vezes maior em regiões vulneráveis em comparação com regiões menos vulneráveis.
E no Brasil, como é a situação?
No Brasil, dados do S2ID (Sistema Integrado de Informações sobre Desastres ) mostram que, entre 1991 e 2023, cerca de 219,7 milhões de pessoas foram afetadas por desastres climáticos, o que inclui mortes, pessoas desalojadas, desabrigadas e que precisaram de assistência médica.
De 2020 a 2023, quase 78 milhões de indivíduos foram atingidos. Na década de 1990, esse número era de menos de 500 mil pessoas.
"Isso reforça a urgência de adotarmos ações concretas para limitar o aquecimento global e minimizar esses prejuízos. Uma verdadeira justiça climática exige soluções inclusivas, integradas e que beneficiem todos, especialmente os mais vulneráveis", diz Rogger Barreiros, do WRI Brasil.
Nesse contexto, o acordo de financiamento climático aprovado na COP29 estabelece que os países desenvolvidos devem destinar US$ 300 bilhões anuais até 2035 aos países em desenvolvimento, para ajudá-los a lidar com os impactos das mudanças climáticas..
Apesar de o acordo final ter ficado longe do esperado US$ 1,3 trilhão anual, o evento destacou a importância de garantir reparações, principalmente para as nações do Sul Global.
Como combater a crise climática de forma justa?
- Criar políticas de adaptação climática, ou seja, que preparem as cidades e o campo para que, quando ocorram eventos climáticos extremos, as populações não sofram tanto como nas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul e as secas na Amazônia;.
- Implementar políticas públicas que sejam mais eficientes no auxílio às populações atingidas pelos eventos climáticos.
"O apoio que os governos oferecem costuma ser muito pequeno e insuficiente. Muitas vezes, quando é oferecida uma ajuda para moradia, as famílias são deslocadas para lugares longe de seus bairros de origem, desconectadas de serviços básicos de transporte e saúde, o que agrava a vulnerabilidade", diz Flávia Martinelli, do WWF-Brasil;.
- No Brasil, uma das estratégias para combater a crise climática é por meio do Plano Clima - Adaptação. Ele tem como objetivo orientar, promover e catalisar ações coordenadas para a adaptação de sistemas humanos e naturais, considerando estratégias de curto, médio e longo prazo, sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da justiça climática;
- A transição energética, a bioeconomia e a restauração florestal podem gerar empregos verdes que ajudem a reduzir as vulnerabilidades e desigualdades sociais;.
- Outra estratégia é integrar as diferentes dimensões de justiça no processo. Por exemplo, a justiça distributiva busca uma distribuição mais equitativa dos recursos para prevenção e adaptação aos impactos climáticos. Já a justiça processual enfatiza a inclusão de todas as partes interessadas nas decisões climáticas, principalmente as mais vulneráveis.
A justiça de reconhecimento ressalta a importância de valorizar e respeitar as identidades, culturas e direitos de grupos historicamente marginalizados, enquanto a justiça retributiva se ocupa em responsabilizar aqueles que causaram danos ao meio ambiente e às comunidades.
Por: Bárbara Therrie
Colaboração para Ecoa, de São Paulo
Fonte: Rogger Barreiros, analista de Socioeconomia e Finanças do Clima do WRI (World Resources Institute) Brasil; Flávia Martinelli, especialista em mudanças climáticas da WWF (World Wide Fund for Nature)-Brasil..